Terrorismo dos Irmãos Presniakov
Inimpetus
Busto Natália Correia - Palácio de S Bento |
Nome:
Natália Correia
Idade:
Antiquissimamente jovem. Perdi-a à medida que fui avançando para um ponto do Espirito em que passado, presente e futuro se fundem.
Estado Civil:
Casada sem condescendências com o enfadonho espirito da conjugalidade.
Naturalidade:
Ilha de S. Miguel
Filhos:
Nenhum. A minha maternidade é universal e não biológica.
"Portugal corre o risco de se tornar um hospital psiquiátrico, porque a sociedade para a qual estamos a correr vertiginosamente é contra o amor. E quem não ama está condenado à loucura."
Natália Correia
Em: https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/02/03/012/1982-11-11?sft=true#p335
A Sra. Natália Correia (PSD):
Sr. Presidente,
Srs. Deputados: Não posso tomar a palavra sem primeiramente louvar a galhardia
e a generosidade democrática com que o Grupo Parlamentar do PSD pôs à minha
disposição parte do seu tempo neste debate, sabendo que nele a minha voz
destoaria da sua doutrina e orientação de voto.
Cumpriu-lhe, assim, honrar o direito dos deputados a não defraudarem os
imperativos da sua consciência, no que valorosamente contribui para a
dignificação e realce moral deste órgão de soberania.
Srs. Presidente, Srs. Deputados: Devo confessar que me foi penoso confrontar-me
com considerações de ordem moral e filosófica na profunda meditação que me
impus para tomar uma posição inteiramente consciente neste complexo problema da
despenalização do aborto. E nesse combate que se travou na minha consciência
tomou forma a ideia de respeitar a opção daqueles que por imperativo de
concepções e de fé religiosas interpretam o direito à vida em termos de o
incompatibilizarem com a impunibilidade do aborto. Perante estes inclina-se o
meu respeito pela coerência com os princípios que, vigorando no seu foro
íntimo, orientam a sua conduta.
Já aos que, num campo de ideias e de sensibilidade laicas, por posições
filosóficas, são adversos à despenalização do aborto provocado, exilando dos
seus raciocínios razões dramaticamente ponderosas que o justificam - a própria
argumentação filosófica da sua argumentação a torna polemizável -, a estes
direi, como Pascal, que toda a filosofia não vale uma hora de dor.
Vozes do PCP: - Muito bem!
A Oradora: - Digo-o pensando nesses muitos milhares
de mulheres que, dolorosamente impelidas por circunstâncias inibitórias de uma
maternidade saudável, arriscam a sua vida em tenebrosos desvãos de curiosas.
Sangue e tragédia com que a efectiva não coactividade e não funcionalidade real
da penalização legal do aborto tece a rede da sua prática clandestina!
Nas reflexões que trabalharam a minha decisão forçosamente me debrucei sobre o
campo científico a fim de obter uma resposta para esta pergunta: em que momento
começa a existir a vida humana desde que o homem é uma maravilhosa
descontinuidade no contínuo biológico que é a vida?
Do famoso biólogo Jean Rostand colhi este depoimento:
Se desejarmos ser consequentes na resposta a esta
questão, será preferível proteger por todos os meios a mulher portadora de
óvulos férteis e o homem portador de espermatezóides.
Outro parecer, este do fisiologista François Jacob, adiantou-me que não existem
entre o ovo e o recém-nascido que dele surgirá um momento privilegiado nem
etapas decisivas que confiram, de repente, dignidade humana ao feto.
Simultaneamente, Jacques Monod - que como François Jacob compartilhou o prémio
Nobel da Medicina e Fisiologia, em 1965-, recusa a identificação do aborto com
o infanticídio, declarando:
O feto não é uma pessoa humana. Ele não tem
consciência. Confundem-se, há muito tempo, uma certa mística e os dados
biológicos.
Muito embora eu não pertença ao número daqueles que fazem da ciência um dogma,
obrigatoriamente associo as opiniões destas sumidades científicas com a lógica
desta verosimilhança. Só com o nascimento se adquire personalidade jurídica.
Por consentâneas razões, mesmo os que defendem a humanização do organismo
embrionário, têm como estabelecido e aceite que o malogro do feto em aborto
expontâneo não cobre registo, baptismo, certidão de óbito ou funeral, para não
falar do enterro religioso como já aqui foi dito oportunamente.
Nesta perspectiva da animação tardia do feto, certos católicos favoráveis à
impunibilidade do aborto em casos extremos, agónicos como o jesuíta americano
Padre Doncel, baseiam-se na concepção hilomórfica da natureza humana sustentada
pelo filósofo católico medieval Tomaz de Aquino. Nesta doutrina que foi
oficialmente adoptada pela Igreja no Concílio de Viena em 1312, predominou a
noção de que, no organismo em desenvolvimento, só com a aquisição de traços
humanos não contraíveis no primeiro trecho da gravidez se dava a infusão da
alma.
Ponderados estes motivos de reflexão, o problema do aborto voluntário em situações
irrecusavelmente dramáticas, pôs-se-me em termos de eu escolher entre o nível
fisiológico e o nível espiritual da existência.
O espiritualismo não
confessional que perfilho não me consentia outra atitude senão a de preferir à
virtualidade fisiológica de humanização, a plenitude em que esta
espiritualmente se realiza.
Eis porque, na discussão
do respeito pelo direito à vida que fulcralmente anima os debates sobre a
despenalização do aborto, firmemente tomo a direcção de atribuir maior valor
aos direitos dos que geram a vida que humanamente se manifesta na fruição da
consciência e da personalidade. Isto porque para mim respeitá-la é, em primeiro
lugar, combater a fome, a alienação, os massacres, as guerras e a
institucionalização do pesadelo nuclear que ameaça ceifar milhões de vidas.
Vozes do PSD e do PS: - Muito bem!
A Oradora: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não posso também afastar do meu raciocínio uma contradição imoral e pungente. Refiro-me à não coactividade, prolixamente, tragicamente demonstrada, da lei que penaliza o aborto cuja prática se propaga numa clandestinidade propícia à morte e a graves lesões físicas e psíquicas, num mercado negro de dor sustentado pelo dinheiro que a aflição, a desgraça e a miséria pagam. E não me escuso a dizer que os que não são capazes de mudar unia sociedade em que a asfixia económica é, quantas vezes, causa do recurso infortunado ao aborto, não têm qualquer espécie de autoridade para legalmente o penalizarem.
Aplausos do PS, do PCP, da ASDI, da UEDS, do MDP/CDE e dos Srs. Deputados do PSD, Silva Marques, António Vilar e Adérito Campos.
Finalmente, Sr. Presidente, Srs. Deputados: O conceito de vida humana é,
pelo seu conteúdo de relação entre o «eu» e o «outro», um conceito histórico
movido pelo avanço social, científico e cultural do homem que gera novas
questões éticas. Eis o que esquecem aqueles que, com uma óptica estática da
ética, fundamentam em valores morais e culturais a ilicitude do aborto
voluntário mesmo quando é o drama que está na sua origem. Eis o que tiveram
presente os legisladores e a cultura dos países
em que a legislação sobre o aborto foi alterada no sentido de combater a chaga
social da sua prática na ilegalidade.
Será que a excelência da nossa superioridade moral e cultural em relação a
esses países, impressionantemente, significativamente numerosos e cujos modelos
são o atractivo do nosso denodo europeizante, consiste na solitária soberba de
abandonarmos à insanidade e à mortalidade do aborto clandestino, um acto a que
esses Estados, com repúdio por um ilusionismo penal que não escamoteia a
consumação real e nociva do aborto, preferem proporcionar cuidados sanitários?
Incansavelmente defendo a
diferenciação cultural da nossa sociedade. Mas ela faz-se com a verdade, não
com a mentira.
Aplausos do PS e do PCP e dos Srs. Deputados do PSD, Silva Marques e António Vilar.
É com a verdade que procuro estar quando me rendo a esta evidência: A despenalização do aborto não o encoraja. Desencoraja, sim, os malefícios do aborto ilegal.
Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas.
Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.
E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluídas
com o milagre do seu corpo em flor.
Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.
Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.
Natália Correia, “Cancioneiro Joco-Marcelino”
in O Corvo, jornal de campanha eleitoral da Coligação por Lisboa
N.ºs 1 a 8, novembro/dezembro de 1989