Maio de 68 em Portugal
Autora do texto: Eduarda Dionísio
1. Em Portugal, quando se diz «Maio de 68» pensa-se na França, melhor dizendo, Paris, talvez mesmo só Quartier Latin, sinónimo de Sorbonne. No gueto em que vivíamos, a França era o «lá fora» mais conhecido e mais «contactável», via emigração (mais de 300 mil em 1968, o dobro em 1971), exílios, deserções da guerra colonial, e via língua (mais ensinada nas escolas do que hoje) e cultura – da liberdade e da «resistência» na II Guerra Mundial.
2. Quando o(s) Maio(s) eclodiram em vários pontos da Europa (e não só), Portugal era uma ditadura e tinha quase 40% de analfabetos. Havia três cidades com universidades, frequentadas por menos de 0,5% da população. Foi em Setembro desse ano que o poder passou de Salazar para Marcello Caetano. Última fase de uma ditadura a que se chamou «primavera». Mas a polícia política e a censura apenas mudaram de nome e continuámos sem direito de reunião, de manifestação e de greve.
3. Portanto, o «terreno» do(s) Maio(s) não existia em Portugal. E os «mal-estares» mais comuns eram outros. Gerado(s) nas e pelas democracias aqui desconhecidas (e por alguns ambicionadas), esse(s) Maio(s) foram vistos pelos poucos que dele(s) souberam sobretudo como «coisa de outros». «Impossível» aqui. Que estranho ser o «aborrecimento» (como o Le Monde de 30/4/68 sugeria) – e não a fome, a tortura e a censura – a «originar» uma «revolução»!...
Que duvidoso ser uma elite – os estudantes – a desencadear uma «desordem» que faria «o poder cair na rua»! Aqui queria-se simplesmente «mais gente» a estudar, o que quereria dizer «outro regime», e não «outra escola».
4. Seria preciso esperar seis anos para a súbita mudança de regime fazer o país inteiro viver um tempo que teve semelhanças (ampliadas) com as formas de libertação, de desconstrução e construção que o(s) Maio(s) de 68 tinha(m) experimentado (com outras razões e resultados) noutros lugares: perder o medo («ousar lutar, ousar vencer»), tomar o destino nas suas próprias mãos, tomar a palavra e ter voz, ocupar o espaço público (sem o desligar do espaço privado), transformar o quotidiano, inverter as hierarquias, viver a vida com os outro(independentemente da classe social e do sexo). E sem fazer decorrer os gestos do que se tinha lido (ou não) nos livros, sem procurar a «justeza» nas «teorias». Nos tempos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 (pelo menos até 25 de Novembro de 1975), os poucos que tinham vivido o Maio de 68 «lá fora» (e regressado) e aqueles (não muitos) que se tinham entusiasmado por ele (pelas suas práticas e imagens, produtos culturais e artísticos, consequências políticas e sociais), que tinham experimentado um pouco as suas «novidades», as suas «rupturas», tiveram mais «instrumentos» disponíveis para falar, agir e construir do que aqueles que lhe tinham passado ao lado. Mesmo que não se reivindicassem «seguidores» ou «herdeiros» de Maio de 68.
Foi assim que este surpreendente país «a mexer» foi visitado por muitos «soixanthuitards» de várias nações e línguas, «turistas» numa época, em parte sua, com três tempos misturados dentro deles: saudade dum passado em que tinham sido actores, entusiasmo por um presente em que outros o estavam a ser, esperança num futuro em que gostariam de voltar a sê-lo. Houve conversas, trocas. E muitos documentários foram feitos por «esses estrangeiros».
A «participação» e a «autogestão», que pareceriam agora menos contraditórias e menos recuperáveis, foram os dois grandes «centros de interesse».
5. Se 1968 não tinha sido referência nem «lição» para grande parte dos que mudaram a vida em 74-75 – na rua e em casa, nos sindicatos e outras organizações, nas escolas, nas fábricas, nos campos, nas instituições, nas igrejas – com uma determinação, sabedoria e imaginação até ali insuspeitadas, não se pode esquecer que muita coisa tinha mudado, nos movimentos de estudantes e na oposição ao regime, entre duas grandes «crisesestudantis»: a de 1962 e a de 1969, ambas violentamente reprimidas. A luta dos estudantes de 62 foi sobretudo contra um diploma legal que restringia ainda mais a «liberdade dos estudantes» e a «autonomia universitária». Não punha em causa a «Universidade», o «Saber», a «função daEscola», o que aconteceria na luta de 69. Iniciada em Coimbra, quase um ano depois de Maio de 68, arranca
com a tentativa de o presidente da Associação dos Estudantes «tomar a palavra» numa cerimónia presidida pelo Presidente da República. O discurso dos estudantes não era admitido. Foi preciso forçar a entrada.Do «protesto» ia-se passando à «contestação». Em Coimbra, um dos grupos de 69 chamava-se, aliás, «os contestas»…
Será arriscado dizer que esta «crise» foi uma «repercussão» de Maio de 68. Mas em 69, pelo menos nas universidades, aumentou a discussão nos grupos e entre grupos, a decisão no local, as «ocupações» dos lugares, e até o humor. Mudaram assuntos, autores de referência (Gramsci, Reich, Gorz, Poulantzas…), formas de expressão e de organização, em que as «bases» contavam. Entretanto, tinha havido Praga.
Também a composição da oposição à ditadura era outra a partir de meados da década de 60, sobretudo entre osestudantes. Tinham surgido vários pequenos movimentos maoistas, trotskistas, católicos, e sem «identificação» no nome, com práticas e discursos bem distintos do até então hegemónico «centralismo democrático» do PCP. A greve da Carris de 68 (uma excepção, claro) uns anos antes também não podia ter sido a que foi: os autocarros e eléctricos circulavam, mas sem cobrar bilhetes. E se não se tratou, na campanha eleitoral de Outubro de 69, de «ser realista, pedindo o impossível», falou-se em «fazer recuar a fronteira do possível».
Também a composição da oposição à ditadura era outra a partir de meados da década de 60, sobretudo entre osestudantes. Tinham surgido vários pequenos movimentos maoistas, trotskistas, católicos, e sem «identificação» no nome, com práticas e discursos bem distintos do até então hegemónico «centralismo democrático» do PCP. A greve da Carris de 68 (uma excepção, claro) uns anos antes também não podia ter sido a que foi: os autocarros e eléctricos circulavam, mas sem cobrar bilhetes. E se não se tratou, na campanha eleitoral de Outubro de 69, de «ser realista, pedindo o impossível», falou-se em «fazer recuar a fronteira do possível».
6. Nos primeiro anos 70 foi marcante o movimento «Todo o poder aos cursos», em oposição à pesada, controlada e controlável estrutura associativa tradicional: sistemática «crítica do saber» e da «função social da escola», ocupação com «cursos livres» das faculdades paralisadas. E houve os NEIP (Núcleos de Estudantes de Intervenção Política) que não pertenciam a qualquer partido e que iriam dar em 74 ao MES (Movimento de Esquerda Socialista).
No Sindicato dos Professores, nascido do 25 de Abril, uma corrente heterogénea punha em causa a escola e lutava pela «autonomia» e «ligação ao meio»: «Pelo poder das escolas» obteve, na Grande Lisboa, 35% de votos em 74, quando, em muitos sindicatos, o PC parecia «intocável». Corrente herdeira de «aprendizagens estudantis» pós-68, mais do que do «anarco-sindicalismo» que a ditadura e o PC tinham destruído há muito tempo.
7. Quarenta anos depois, ninguém dirá que vários governantes, deputados e destacados dirigentes partidários foram os que imaginaram e fizeram estas lutas, passadas e apagadas, e que o autor e apresentador (na televisão pública) de um programa semanal, que se diz «de História», foi o Ministro da Educação que as reprimiu em 1969.
very good!!!!
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